segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Leitura em momentos de crise

Penso que realmente não há como falar em leitura compartilhada sem falar em leitura individual, daquela que a gente se abandona dentro de um livro e some da face da terra.  Ou mesmo da leitura que se faz sozinho, dia a dia, quando se lê um aviso, o jornal, uma placa ou um bilhetinho deixado pelo marido.  A verdade é que ler é um ato absolutamente solitário.  Compartilhar a leitura é fazer uma ponte, mostrar um caminho que um dia o outro vai trilhar sozinho.  Porque no fundo, no fundo, o intuito é que cada um se enxergue leitor e perceba que aquilo pode ser feito só.  Acho que já citei isso antes, mas repito aqui porque vale a pena ser repetido.  A Heloísa Seixas diz que "ler é o encontro de duas solidões" - do leitor e do autor do texto (seja ele qual for).  Hoje eu vinha no carro voltando de viagem e lendo tudo quanto era placa pendurada na beira da estrada.  Enquanto lia pensava: alguém escreveu isso.  Alguém pegou essa madeirinha, a tinta, o pincel e pintou "Paradão do Abacaxi" nessa placa.  Viajei.

Mas nem é disso que eu quero falar.  Hoje a Luísa acordou com uma baita dor de estômago.  Ainda não conseguimos descobrir o que foi que aconteceu, mas ela acordou mesmo bem ruinzinha, com a cara amarela e muito infeliz.  Não queria dar remédio nenhum porque não conseguia definir que dor era aquela por isso depois de tentar sem sucesso as soluções mais óbvias: mandar ir ao banheiro, fazer massagem na barriga e botar no colo, ela resolveu ir se deitar de novo.

Durante o café da manhã o Felipe e eu decidimos que deveríamos cancelar os planos de passeio para levá-la ao pronto-socorro, afinal a coisa parecia séria.  Assim que terminei de comer fui dar uma espiadela para ver se ela tinha dormido de novo.  Que nada.  Cheguei bem quietinha na porta e só consegui ver a cabecinha levantada prá fora da coberta, a mocinha de bruços, apoiada nos cotovelos... lendo.  Estava tão longe que nem ouviu da primeira vez que eu perguntei se tinha melhorado da dor de barriga.  Da segunda vez ela me olhou e respondeu:
-Já melhorou...  tá bem fraquinha, mas acho que daqui a pouco já vai passar.
Que coisa...  Ela leu a dor prá longe.  E continuou lendo até que a dor desapareceu.

É claro que essa historinha (real!) tem a ver com as leituras que ando fazendo.  Parece que tudo aqui em casa sempre acontece a propósito dessas leituras.  Sincronicidade?  O livro do momento se chama "A Arte de Ler ou Como Resistir à Adversidade" escrito pela antropóloga francesa Michele Petit.  Vou copiar aqui um pedacinho do texto da orelha do livro para explicar o trabalho fantástico que ela fez.

"... Partindo de experiências colhidas pessoalmente ou por meio do diálogo constante com leitores, meidadores de leitura, bibliotecários, professores, psicanalistas, escritores e animadores culturais de várias partes do mundo - mas sobretudo da América Latina - , Michèle Petit apresenta aqui diversas experiências de leitura compartilhada desenvolvidas em regiões afetadas por conflitos armados, desequilíbrio social, migrações populacionais forçadas ou acentuada deterioração das condições de vida."

Não canso de me surpreender com o poder da leitura, principalmente da leitura literária.  Li em algum lugar (e agora não me lembro onde de jeito nenhum) que "o leitor é um caçador que percorre terras alheias."  Nessas terras nos curamos, nos resolvemos, sobrevivemos.  Em maior ou menor grau, na leitura nos refazemos.  Primeiro acompanhados por alguém que nos empresta seus olhos, sua voz e seus saberes de leitor até que nós mesmos, sozinhos, somos capazes de espantar nossas dores prá bem longe.  Só com um livro.

E viva o google: o autor da frase ali de cima é o sr. Michel de Certeau, de quem eu nunca tinha ouvido falar antes na vida.  Agora vou ter que ler sobre ele na wikipedia.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Releituras

Sei bem que o leitor favorito da Luísa é o Felipe e já estou bem conformada com isso.  Eu sinto só uma pontinha de ciúmes, mas fico bem feliz de saber que eles tem essa conexão tão especial.  Só tenho oportunidade de ler com a Lulu mesmo quando o Felipe não está em casa na hora dela ir para a cama - por isso o livro do Pinóquio está durando tanto.  Ah, sim, porque minha  filha escolhe um livro diferente para cada leitor.  Com o Felipe ela estava lendo Reinações de Narizinho, do Monteiro Lobato e comigo o Pinóquio, do Carlo Collodi.  Cada qual com o seu livro, não vamos misturar as coisas!

No fim de semana vi os dois procurando um dos livros da série do Lobinho, do Ian Whybrow, com tradução do Carlos Sussekind.  Daí perguntei porque eles iam ler aquele livro de novo se já tinham lido ele antes.  Os dois me olharam com a cara mais desentendida do mundo e me explicaram, como se fosse óbvio, que já fazia muuuuuito tempo que tinham lido aqueles livros.  Queriam ler de novo, oras.



Como é que eu pude ser tão obtusa?  Eu mesma vivo justificando a existência de tantos livros em casa assim: não sei nunca quando vou ter vontade de reler este ou aquele título.  Tenho que ter todos os meus favoritos à mão para qualquer emergência!  A razão para a escolha da Luísa era realmente óbvia: as histórias do Lobinho são divertidíssimas!  Dá prá ler muitas e muitas vezes e desfrutar sempre.

Quando eu estava dando aula eu amava os momentos em que me sentava no chão para ler para meus alunos.  Pelo menos uma vez ao dia nos reuníamos para desfrutar juntos de uma história qualquer.  Geralmente escolhia para ler para eles um livro em capítulos, que era para ficar mais emocionante!  Mas o interessante era que entrava ano, saía ano e eu acabava lendo sempre os mesmos livros para as turmas.  As aventuras da Pippi Meialonga, da Astrid Lindgren eram um grande sucesso, assim como os livros do Roald Dahl.  As Histórias de Dragão da Ruth Stiles Gannett costumavam ser uma surpresa emocionante e era sempre o primeiro.  Em tantos anos de sala de aula, nunca me cansei de ler e reler os mesmos livros.

Não foi Jorge Luis Borges quem disse que preferia reler do que ler?

Ontem à noite o Felipe não estava aqui para colocar a molecada na cama, mas eu não li para a Luísa.  Quando entrei no quarto dei com ela absorta na leitura do livro do Lobinho (nem sei qual deles).  Ela estava em pé, ao lado da cama, tão entretida que tinha se esquecido de se deitar.  Em silêncio, puxei o edredon.  Perguntei se ela não queria entrar na cama, ela deu uma risadinha, pulou para dentro dos lençóis, mas não me respondeu.  Ficou ali, totalmente perdida na história até eu pedir para ela desligar o abajur e ir dormir.

Histórias do Lobinho (de Ian Whybrow)
Lobinho na Escola de Enganação
Diário das Façanhas de Lobinho
O Terror Domesticado
O Detetive da Floresta

Histórias da Pippi Meialonga (de Astrid Lindgren)
Pippi Meialonga
Pippi a Bordo
Pippi nos Mares do Sul

Histórias de Dragão (de Ruth Stiles Gannett)
O Dragão de Meu Pai
Aderbal e o Dragão
Os Dragões da Terra Azul